Porque dissertar despropositadamente é preciso.

janeiro 16, 2011

Simplesmente diferente.¹

Com seu pijama azul escuro, o mesmo de quatro anos atrás, ele acorda e cumpre a religiosa tradição que já tem mais história que o referido pijama de mangas desbotadas: colocar o pé direito no chão antes do esquerdo. Está em pé sob o chão gelado, são cinco da manhã de mais uma segunda-feira. O dia começou bem.

O radinho de pilha, que resiste bravamente sem a antena, também o acompanha desde tempos mais remotos. Sintonizá-lo e posicioná-lo estrategicamente sobre a única cômoda é o terceiro ato de nosso personagem.

O elevado grau econômico que se reflete nas casas vizinhas e no exterior da sua própria casa, não se reflete no interior. Ali, tudo é simples. Ele não se preocupa com luxo, com conforto ou com aparência. Basta, para ele, a eficiência e o funcionamento que garantem a utilidade daquilo que usa. Mesmo quando desgastado ou parcialmente estragado, só opta por novidades quando o obsoleto torna-se inoperante. Sua ideologia é diferente. O radinho de pilha, velho, amassado e sem a antena, transmite o noticiário das cinco e cinco, mesmo que para isso precise ser cuidadosamente posicionado? Se sim, isso basta.

Já devidamente vestido e calçado, atravessa o quarto rumo ao segundo dos quatro cômodos da casa. São cinco e vinte, ele já está atualizado a respeito da previsão do tempo para o dia, daquilo que de importante ocorreu na madrugada, do andamento do pregão nas bolsas do outro lado do mundo e do violento terremoto que foi previsto para o país vizinho.

Dono de uma capacidade intelectual acima da média, tem seus pensamentos perfeitamente ordenados. O dia transcorre dentro do previsto, até porque são raras as ocasiões em que ele é pego de surpresa. Sabe das conseqüências de seus atos antes de executá-los e é com essa percepção distinta de mundo que senta-se à mesa para tomar seu café forte, puro, enquanto abre o primeiro dos três jornais que assina e começa a lê-lo, de trás para frente.

Através da janela semi-aberta, os primeiros raios solares adentram na cozinha, trazendo consigo a brisa tranquila do amanhecer num dos nobres bairros da cidade.

Faltam exatos catorze minutos para as seis horas, ele levanta os olhos do terceiro jornal e aguça a audição para os ruídos vindos do exterior. Como esperado, às cinco e quarenta e sete, o ônibus cujo destino é o centro da cidade passa sacolejando pela rua onde todos, exceto o nosso personagem, possuem carros importados e reluzentes para a própria locomoção.

Faltando cinco minutos para as seis horas e, portanto, trinta e cinco para o início de seu expediente, nosso personagem termina de lavar e guardar o que sujou ao preparar e beber o café, tranca a janela através da qual os raios solares incidiam sobre o fogão, coloca a mochila sobre os ombros, apanha a chave e sai de casa para o início de mais uma semana de trabalho.

Na garagem, confere os pneus de sua mais recente aquisição, uma bicicleta cujas doze marchas lhe são de vital importância na subida leste.

Desfruta cada minuto pedalado, não há maior integração com a natureza, no seu entender, do que ser responsável pela velocidade de sua locomoção. É ele que faz a engrenagem girar, não está simplesmente pressionando um pedal que vai gerar uma reação em cadeia para impulsionar um carro. Além de que, testemunhar o amanhecer da cidade sobre duas rodas, sentir a brisa acolhedora da manhã no rosto e contribuir para a natureza ao não poluir, são, para ele, condições de que nunca abrirá mão ao se locomover.

Já está no quarteirão ocupado pela empresa da qual é sócio, cumprimenta os seguranças de forma familiar e coloca um cadeado prendendo sua bicicleta ao poste, no meio do estacionamento. Infelizmente, ali não há lugar para bicicletas, ele até já teria providenciado isso, mas, do alto de sua racionalidade, não vê sentido em criar algo que estaria à disposição do público em geral, mas tendo somente ele como beneficiário.

Seis horas e trinta minutos, o nosso personagem já se encontra na empresa para iniciar sua jornada de trabalho. Esse conto termina aqui, mas a história do homem que se diferenciava por ser simples seguirá sendo contada para mostrar a jovens, adultos e crianças que o ser humano ainda pode evoluir como pessoa. Dê valor ao que importa, priorize a simplicidade, evolua você também.

¹ Conto premiado no Liberarte 2010 - concurso cultural de crônicas, contos e poemas da Fundação Liberato -, releve o clichê, portanto.

4 comentários:

Eduardo Mercadante disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Eduardo Mercadante disse...

Você já tinha me mandado esse conto. Reli, e gostei de novo.

Maria Clara disse...

Nossa, que legal esse conto. Muito bem escrito, perfeitamente visualizável e muito bom!

Não esperava esse filme, haha, achei que fosse acontecer alguma coisa! Mas foi uma boa surpresa

Érika Zemuner disse...

Uia, não sabia desse seu interesse por literatura! :O

Choquei, num bom sentido.
E muito legal, você escreve muito bem, apesar da "moral da história" uhsuhushasuhasuahs

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